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A natureza não conhece fronteiras

  • 10 de ago.
  • 7 min de leitura
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Publicado originalmente em 29 de junho de 2013, no Conexão Israel


por Rafael Stern


Depois de terminar meus estudos de graduação em geografia, estava procurando uma forma de ir para Israel e seguir trabalhando na área ambiental. Tive a oportunidade de ser madrich do Taglit, e trocando ideias com o guia do meu grupo sobre meus planos futuros, ele disse: “cara, vai conhecer o Machon Aravá (Instituto Aravá). As pessoas de lá não são pessoas, são anjos. E eles estão salvando o mundo.”


Um ano depois eu estava sentado numa sala de aula como aluno do Machon Aravá. A proposta do instituto é grandiosa, mas afinal, não é de propostas grandiosas que o mundo está precisando? O meio ambiente está seriamente ameaçado – aquecimento global, destruição da biodiversidade, poluição, falta de acesso à água... E no Oriente Médio, há um conflito que já dura décadas, acumulando fracassos de negociações. A solução desse conflito não parece iminente, mas em paz ou não, querendo ou não, os povos do Oriente Médio compartilham o ar, a água e o solo. Então, a proteção do meio ambiente de forma a permitir uma vida saudável é um interesse dos povos da região. Se Israel já sofre com escassez de água, o caso da Jordânia é muito pior. O dos palestinos tampouco é confortável. E as fontes de água para os três povos são as mesmas. Devido à proximidade, a poluição do ar e do solo tem consequências para todos.


O Machon Aravá, fundado por jovens idealistas do Kibutz Keturá, isolado no vale da Aravá, sustenta que não podemos esperar um acordo de paz para começar a cooperar para proteger o meio ambiente. É urgente! E mais, a própria cooperação ambiental pode ser um disparador de cooperações mais profundas, coexistência, paz. Para por em prática esse ideia, fundaram um instituto de pesquisa e ensino (Machon Aravá), filiado à Universidade Ben Gurion (os créditos acadêmicos e as provas são da universidade), com excelentes pesquisadores e professores (todos com doutorado), localizado dentro do kibutz. Os alunos e os professores são israelenses, palestinos e jordanianos, além de alguns alunos de outras partes do mundo. Nós moramos dentro do kibutz, juntos, compartilhando alojamentos e quartos. Temos aulas que vão desde recursos hídricos, geologia e ecologia até as relações entre as sociedades e o meio ambiente que as rodeiam, de um ponto de vista bem antropológico. Por essas disciplinas, recebemos crédito (que podem ser de graduação ou mestrado) da Universidade Ben Gurion, e temos a opção de desenvolver projetos de pesquisa. Além da parte acadêmica, temos sessões semanais de debates diretos sobre o conflito, política, e notícias da região. Temos trabalhos de campo, e aulas de hebraico e árabe. O idioma oficial do instituto é inglês.



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Eu demorei quase um ano para começar a escrever sobre a minha experiência lá. Como o deserto, com quase nenhuma cobertura, que se expõe desnudo e vulnerável ao Sol e às estrelas, também nós temos os aspectos mais íntimos da nossa identidade constantemente testados e questionados. Marcamos juntos datas como o Yom haShoá (Dia de Lembrança do Holocausto), Yom haZikaron (Dia de Lembrança, em memória aos caídos na defesa Israel, e das vítimas de atentados), Yom HaAtzmaut (Dia da Independência de Israel),  Nakba (em árabe “tragédia”, como os palestinos se referem ao Dia da Independência de Israel, considerado o dia da tragédia nacional palestina), o Dia da Terra (dia de memória palestina às terras despropriadas para construir assentamentos israelenses),... É difícil se manter firme, o tempo todo, as lágrimas muitas vezes são a única maneira de aliviar a tensão. É claro que teatro, jogos, trilhas e festas às vezes também ajudam.

Fizemos um trabalho de campo para conhecer a bacia hidrográfica que é a principal fonte de água para israelenses, palestinos e jordanianos, a bacia do Rio Jordão (e do Lago Kineret - Mar da Galileia). Vimos como os drusos estão inseridos nesse contexto, em Majdal Shams (nas Colinas do Golã). Vimos como a Barreira de Separação não impede que uma cidade judaica em Israel e uma cidade árabe na Cisjordânia cooperem no tratamento do esgoto. Vimos como a dessalinização da água do mar está alterando alguns componentes desse balanço hídrico. Fomos à Jerusalém Oriental, onde almoçamos numa casa palestina que já foi demolida (por Israel) e reconstruída (por uma ONG israelense) algumas vezes, às margens do Vale Kidron (rio que só tem água na época das chuvas, e que drena a água que choveu em Jerusalém, levando-a até o Mar Morto). Fomos tomar chá com palestinos que se recusam a sair de Silwan, a Cidade de David. Vimos uma escola onde já estudam juntos judeus e árabes.


Depois de ter ficado mais amigo de um palestino, fui com outras pessoas passar um fim de semana na casa dele, em Nablus. Estava tomando chá na varanda, quando começaram a cair flores em mim. Olhei para cima e duas crianças, sem querer saber quem éramos ou da onde vínhamos, nos jogavam flores. Por outro lado, tivemos que criar nomes fictícios para nossos amigos israelenses, para não sermos percebidos ao sairmos à rua. Fomos a um campo de refugiados palestinos, onde presenciei um debate riquíssimo, em inglês, entre dois palestinos, carregado de auto-crítica às ações palestinas, e de reconhecimentos de coisas positivas feitas por Israel. Passei por um checkpoint. Vi um soldado israelense espancando e retendo um palestino desarmado diante de sua mulher e dois filhos. Fomos ao túmulo dos patriarcas e matriarcas em Hebron, não sei pra que, pois naquele momento a visita me pareceu desprovida de qualquer sentido. Hoje entendo que possui tanto para mim, quanto para eles. Fui guiado em Hebron por um palestino que se lamenta até hoje que sua ex-namorada judia, colona (a menina mais linda que ele já conheceu), se casou com um judeu, mas seus amigos colonos judeus são bons de futebol, pelo menos.

Até hoje, recebo a saudação Shabat Shalom de alguns desses palestinos.


Alguns dilemas: Um dia, um grande amigo israelense que conheci lá me confidenciou: “cara, se eu for convocado como reservista, talvez eu reviste no checkpoint os pais ou irmãos de alguém que estuda com a gente.” Achei esse dilema complicado, mas não tanto quanto esse outro. Um israelense do curso foi convocado como reservista para a operação Coluna de Fogo, no final de 2012. Seu namorado da Jordânia, assim como 60% dos jordanianos, tem origem palestina...


Conheci um jordaniano que acha Tel Aviv a melhor cidade do mundo. Uma jordaniana se encantou pelo estilo de vida do kibutz. Alguns palestinos achavam muito boas as noitadas do kibutz. Preciso levá-los pra Lapa um dia.


Muitos palestinos não conseguem ainda entender por quê o KKL (Fundo Nacional Judaico) é um dos principais patrocinadores do instituto, e se questionam sobre receber essa ajuda.

Tive aulas com um professor judeu sul-africano naturalizado israelense, que tem projetos de cooperação com palestinos de Gaza para construir dispositivos domésticos de dessalinização da água do mar. Um professor palestino é o diretor de pesquisas de um centro de energia renovável, e agora o instituto abriga o maior campo de captação de energia solar do Oriente Médio. Uma pesquisadora judia norte-americana naturalizada israelense, e membra do kibutz, fez germinar uma semente de tamareira encontrada em Massada, preservada pela secura do deserto por quase 2 mil anos. Agora tem uma tamareira da época talmúdica crescendo no kibutz. Infelizmente, ela é macho, não dará tâmaras. Se bem que as tâmaras modernas da Árava não deixam nada a desejar. Enfim, ela entrou no livro dos recordes, até que um gaiato fez germinar uma semente ainda mais antiga, congelada na Sibéria.

Eu traduzi a cerimônia de Yom haShoá do kibutz para um palestino, que se emocionou e prestou o mesmo respeito que eu às vítimas do Holocausto.


Duas anedotas: o melhor amigo que fiz no Machon Aravá foi um judeu argentino naturalizado israelense. Um dia, conversava com ele no gramado do campus, quando passa um palestino e diz: “vejam, um brasileiro e um argentino ficaram amigos. Esse Machon Aravá faz mesmo milagres. A paz no Oriente Médio agora é fácil.” Em outra ocasião, numa discussão política sobre o Estado Palestino, eu defendia que aos colonos judeus poderia ser dada a opção de se tornarem cidadãos palestinos, ao que um palestino retrucou: “De jeito nenhum! Isso é inconcebível! Como imaginar os palestinos tendo que viver com pessoas que serviram no exército de Israel e que podem ter matado alguém da família deles?”. De pronto, rebati numa ironia bem ácida: “Pois é, os israelenses não tem esse problema, pois quem matou a família deles se explodiu, não existe mais!” Depois de dois segundos (longuíssimos) de um silêncio muito tenso, todos, israelenses, palestinos e internacionais caíram na gargalhada, e não conseguimos mais voltar à discussão. Um pouco de humor ajudava às vezes.


Não sei se despertados para a urgência de querer tentar ajudar a resolver o problema, ou se porque depois de passar por uma experiência forte como essa é difícil voltar a viver uma vida burguesa em algum país ocidental, só sei que a maioria dos internacionais que fizeram o curso e que são judeus, fizeram aliá (emigraram para Israel). E isso apesar de toda a crítica a Israel que escorreu deles durante o curso, e apesar também do eterno sentimento de culpa de conseguir uma cidadania tão automaticamente, enquanto que para muitos dos palestinos que estudaram conosco, pode ainda demorar muitos anos para ter até mesmo um país.


O profeta Isaías disse que um dia o lobo e o cordeiro viverão juntos, e que as pessoas plantarão vinhedos e comerão seu fruto. Miquéias (cap. 4; vers. 4) disse que no tempo vindouro, de paz, cada pessoa se sentará à sombra do seu vinhedo e da sua figueira (por ser uma das árvores nativas de Israel que fornecem a melhor sombra, se sentar à sombra de uma figueira é uma expressão do tempo do Tanach que simboliza tranquilidade, paz). Talvez os profetas tenham utilizado essa metáfora com elementos da natureza para nos dar uma pista do caminho a seguir. Lobos da estepe ou da aravá, cordeiros, todos devemos nos unir para plantar vinhedos ou tamareiras de 2 mil anos de idade, sentarmos juntos à sombra de uma figueira ou de uma acácia, e apreciarmos a paz que isso nos trará.


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*A acácia é a única árvore que cresce de forma selvagem na Aravá, e que tem relativamente boa dispersão na região. É a árvore que está no símbolo do Machon Aravá.


**"A natureza não conhece fronteiras" é o lema do Instituto Aravá.


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